Sim, o título do presente artigo lembra uma importante obra. Nobel de Economia, Daniel Kahneman defende o conceito de duas formas de pensar: intuitiva/emocional e deliberativa/lógica. Uma, rápida; outra, devagar. Especificamente sobre o tema do bem-estar, Kahneman aponta uma distinção importante: o que se sente quando as pessoas vivem suas vidas versus o julgamento acerca da própria vida. A diferença entre avaliar uma experiência (regida por intuições) e o julgamento da vida como um todo (dimensão mais lógica) é o centro da questão colocada pelo autor – essa perspectiva inspirou uma de nossas visadas em pesquisa nacional sobre bem-estar. O Instituto Informa apurou duas formas de avaliação sobre o que promove o próprio bem-estar do entrevistado. Na primeira, sondamos segmentos que contribuem para a percepção geral de bem-estar (a vida como um todo). Na segunda, perguntamos sobre uma experiência de bem-estar recente.
Na pesquisa com 1.000 brasileiros das cinco regiões do país na primeira semana de março/2024, aplicamos “lupa” sobre alguns aspectos relativos à avaliação do bem-estar – trata-se do tema que temos investigado exaustivamente nos últimos 15 anos. O propósito de nossas investigações é trazer para os gestores (públicos e da iniciativa privada) insights sobre como produzir bem-estar e ser reputado por isso – comprovei em investigações sociais acadêmicas essa relação. Por isso, o objetivo central das consultorias reputacionais do Instituto Informa é a investigar qual a produção de bem-estar para o público geral que maximiza reputações sobre empresas e governos. Temos assim, uma abordagem em que todos ganham. Não cansamos de proferir nosso “mantra”: gestão de reputação, todos dependem dela! Dependem os que recebem bem-estar e os que buscam reputação.
É superlativa a proporção dos brasileiros que avaliam positivamente o próprio bem-estar. O fenômeno foi observado em todos os estratos da pesquisa, incluindo região, idade, gênero, escolaridade, classe social. Antes da avaliação dos resultados, é necessário refletir sobre o conceito de bem-estar, que é amplo, complexo e relativo. Amplo na medida em que retrata variadas áreas relacionadas às experiências cotidianas de cada um de nós – da saúde do corpo à saúde da mente; das questões financeiras às condições dos relacionamentos pessoais. É complexo por ser indicativo de todos os possíveis fenômenos que forçam os nossos sentidos. Finalmente, o bem-estar é relativo, pois depende da dor e da interpretação de cada um. Portanto, ao pedirmos aos brasileiros para avaliarem o próprio bem-estar, estimulamos cada um deles a projetar variados significados sintetizados em respostas simples – entendemos que para além das respostas há um campo muito amplo de significados e interpretações, não retratados plenamente em um estudo quantitativo. Por isso, conjugamos os estudos que fazemos em três eixos: quantitativos, qualitativos e semióticos.
Apesar do expressivo contingente de 76% de satisfeitos com o próprio bem-estar, as proporções de satisfação em alguns estratos apresentam diferenças significativas, como observado pelo cientista político Fábio Vasconcellos, Líder de Inteligência de Dados e Projetos Acadêmicos do Instituto Informa, em seu artigo nesse portal (Maioria dos brasileiros tem avaliação positiva sobre o próprio bem-estar – Balizah). É importante destacar o relevo para a diferença quanto à situação econômica do respondente: entre os domicílios categorizados como classe de consumo “A”, a satisfação com o bem-estar é de 96%. Já entre os respondentes de “classe D/E” a satisfação é de 64%.
É preciso atentar para o fato de que, apesar de 76% estarem satisfeitos, um número expressivo – 50 milhões de brasileiros – indica insatisfação. Embora apenas 4% dos respondentes avaliem o próprio bem-estar como “ruim”, a pesquisa mostra ainda 20% das respostas indicando uma avaliação moderada, regular. Perpassando estatísticas oficiais, observa-se que o número de brasileiros abaixo da linha da pobreza, dependendo da metodologia de cálculo, pode chegar na casa de 10% da população. Com um olhar mais atento aos dados, podemos salientar alguns índices de satisfação e insatisfação com relação ao bem-estar. Deve ser considerado também o relativismo sobre o que cada público reconhece como bem-estar. Pode ser inimaginável para uma pessoa de classe média encontrar razão para satisfação entre habitantes de comunidades em que as condições estruturais mínimas são ausentes. Por outro lado, por exemplo, relações comunitárias podem expressar potências de alegria não alcançáveis por muitos habitantes de bairros nobres da mesma cidade.
No presente artigo dedicarei avaliação de um recorte: setor público – em outro artigo que sairá em breve, dedicarei atenção a outros segmentos. Como salientado no parágrafo de abertura, sondamos as causas de promoção do bem-estar em duas camadas avaliativas: vida como um todo e experiência recente. Inicialmente, avaliaremos a primeira camada, o bem-estar na vida como um todo. Chama a atenção nos dados da pesquisa do Instituto Informa as razões declaradas para avaliar o bem-estar (positiva ou negativamente): temas referentes ao campo da gestão municipal, presentes na vida cotidiana, não são muito citados como explicadoras de bem-estar – “condições de sua cidade” foi citado por 2,4%; “serviços públicos de sua cidade” 0,1%; “condições de seu bairro”, 0,3%. Observa-se um baixo protagonismo do segmento “gestão pública municipal” na indicação de motivos para avaliar o próprio bem-estar (a vida com um todo). No entanto, outros aspectos indicados como motivos para a avaliação do bem-estar podem se apresentar como consequência das ações governamentais nos municípios – casos da saúde (23,3%) e da situação econômica (20,0%), entre outros indicados na tabela a seguir.
A ausência de protagonismo do poder público no que se refere ao tema do bem-estar (na vida como um todo) pode ser índice de questões de fundo. A ausência de citação, elogiosa ou crítica, de fatores diretamente relacionados à administração municipal pode indicar a desassociação com o conceito de bem-estar para o brasileiro. E isso se mostra desafiador para os gestores reputacionais de instituições públicas. Dado que a insatisfação com o próprio bem-estar cresce quanto menor a condição financeira do respondente, dado também que o público com menor renda é usuário potencial de serviços públicos, é interessante notar a ausência de protagonismo dos governos municipais também nesse corte populacional. A primeira conclusão que podemos enunciar é que o poder público não é ativado na memória do brasileiro quando o tema é bem-estar (da vida como um todo).
A segunda camada avaliativa, refere-se a experiências recentes de bem-estar – cortes temporais no curso da vida e não a vida como um todo. Pedimos aos respondentes para apontar um segmento que possa ter produzido bem-estar no último mês (fevereiro). Perceba a diferença entre as questões: na primeira buscamos respostas para o principal promovedor de bem-estar associado à condição de vida como um todo. Nessa segunda questão, a citação de experiência de bem-estar recente. De um lado a perspectiva perene, de explicação geral. Do outro, experiência periódica, pontual. A tabela a seguir expõe os resultados dessa segunda camada avaliativa.
Observe, caro leitor, a diferença entre as citações no que se refere ao poder público nas duas camadas avaliativas: a vida como um todo com 2,8% das citações e a experiência recente com 14,1%. Curiosamente, entre os que avaliam negativamente a própria vida, o poder público representa 28,2% de experiências de bem-estar recente. As áreas que estimulamos na apresentação de uma lista, no que se refere ao poder público, foram “serviços públicos” e “programas governamentais”. Como já salientado, pessoas vulneráveis economicamente apresentam mais insatisfação com o próprio bem-estar e, usuárias mais prováveis dos serviços e programas governamentais, indicam com maior frequência tais experiências.
Exponho na tabela a seguir os dados que indicam a diferença comentada acima sobre a opinião dos entrevistados em função da renda. O poder público tem impacto em experiências de bem-estar recente quase três vezes maior entre os mais pobres na comparação com os mais ricos.
O impacto de áreas governamentais em experiências de bem-estar entre os mais pobres, como observado acima, é mais presente – tanto no que se refere aos serviços quanto aos benefícios de programas. Passeios e viagens, por exemplo, protagonizaram as experiências – cabe ressaltar que fevereiro foi período de folias – não podemos deixar de considerar essa possibilidade nas respostas sem projetar a importância do poder público na organização de muitos desses eventos – isso não foi retratado na sondagem em detalhes.
Observamos duas formas de associação entre percepção de bem-estar do brasileiro e o setor público. As experiências positivas recentes com o poder público, pelo potencial que têm de promover alívios, soluções, auxílios em momentos de necessidade, são mais associadas ao bem-estar (ou a experiências promotoras de bem-estar) do que avaliações de períodos mais amplos, “a vida como um todo”. Esse insight promove reflexões variadas sobre gestão e comunicação de políticas públicas. Ainda que o brasileiro não reconheça o poder público como promotor de bem-estar em uma perspectiva perene, as experiências cotidianas pontuais revelam bom nível de reconhecimento. As narrativas sobre experiências cotidianas episódicas mostram-se mais potentes no processo de diálogo com a opinião pública do que aplicações hiperbólicas – presentes em muitas estratégias de comunicação política. Assim como indica Daniel Kahneman sobre as duas formas de pensar, podemos refletir sobre as duas formas de enunciar as ações de governo: experiências episódicas e vida cotidiana, duas formas de reconhecer a promoção do bem-estar.