A ciência cognitiva perdeu um dos seus mais ilustres representantes no fim de março passado. Daniel Kahneman (1934-2024) morreu aos 90 anos, em Nova York, após uma longa carreira de contribuição para a linha de pesquisa que viria a ser chamada de “economia comportamental”. Embora fosse psicólogo de formação, Kahneman ganhou o Nobel de Economia em 2002, por seu trabalho em parceria com Amos Tversky, um psicólogo cognitivo da Universidade de Stanford, morto em 1996. Juntos, eles realizaram estudos ainda nos anos 70 que inovaram a compreensão do modo como as pessoas fazem julgamentos e tomam decisões.
Conhecido no Brasil pelo best seller “Rápido e Devagar”, Kahneman e Tversky publicaram em 1974 “Julgamento sob incerteza: heurísticas e vieses”. O estudo é considerado um marco porque apresentou as primeiras hipóteses de como raciocinamos e tomamos decisões muitas vezes imprecisas ou, na pior das hipóteses, erradas. Como exatamente isso acontece?
De uma maneira bastante resumida, Kahneman e Tversky sugerem que nossos julgamentos e decisões são influenciados por heurísticas (atalhos), ou seja, procedimentos simples de raciocínio que adotamos para fazer escolhas que consideramos as mais adequadas. Em outras palavras, as heurísticas nos ajudam a reduzir os custos de raciocínio e de processamento de uma grande quantidade de informações em situações complexas. É uma estratégia quase automática do cérebro.
O problema, segundo os autores, é que, a depender da situação, tomamos decisões imprecisas ou erradas porque as heurísticas produzem vieses na maneira pela qual raciocinamos. Kahneman e Tversky ressaltam, contudo, que as heurísticas, em várias situações, podem ser necessárias para a tomada de decisão rápida, em que você não teria tempo para avaliar profundamente as informações. Entre pular no rio do alto de um ponte e escapar de ser atropelado, não há muito o que pensar. Outro fator que interfere nas nossas avaliações, julgamentos e decisões são nossos estados emocionais. Raiva, entusiasmo, alegria, tudo isso, também influencia a maneira pela qual adquirimos e processamos as informações, logo, como decidimos.
Nessa perspectiva, heurísticas e vieses são dois excelentes pontos para pensarmos sobre comportamento eleitoral, já que nossas escolhas eleitorais impactam nossas vidas individuais e coletivas. Três pontos são essenciais para observarmos. O primeiro é que disputas eleitorais, como a que teremos este ano, costumam ser cenários complexos para muitos eleitores, em especial para aqueles menos atentos ou com baixo interesse por política. São inúmeros candidatos a prefeito e vereador em uma única cidade; diversidade de temas; perfis e propostas, além do histórico dos competidores. Quem pode ser o melhor candidato? Qual deles está mais próximo dos meus interesses? Quais são, afinal, os meus interesses? Quais são as qualidades de um candidato ou políticas que considero as mais importantes?
Como sabemos, o voto é apenas a expressão final de um processo de aquisição de informação (seja direta ou indiretamente) para a tomada de decisão. Como costumamos repetir na Ciência Política, os “eleitores não são bobos”. Eles avaliam um candidato/política como aquele (a) mais próximo (b) ou mais distante dos seus interesses, segundo as informações que têm acesso. Este é o segundo ponto a ser observado: como há um custo muitas vezes elevado para entender as dinâmicas da política, as características das propostas dos candidatos ou mesmo estimar riscos futuros, o eleitor recorre à heurísticas (atalhos) para compreender a política, seus atores e demais questões. Os vieses de raciocínio, nesse sentido, poderão limitar ou reforçar percepções que o eleitor forma sobre os candidatos e o quanto os competidores atendem ou não ao seu (eleitor) interesse.
Há ainda um terceiro ponto que gostaria de chamar atenção. O processo eleitoral é, em última análise, uma disputa de comunicação. Os agentes (candidatos, mídia e demais instituições) produzem informações para a tomada de decisão dos eleitores. Quais heurísticas serão estimuladas para influenciar a maneira pela qual os eleitores farão suas avaliações?
Sim, muitas campanhas buscam exatamente atalhos informacionais que sejam de mais fácil percepção e compreensão por parte dos eleitores. É assim que as campanhas procuram meios de despertar a atenção e a compreensão e o envolvimento do eleitor com uma candidatura. Do lado do eleitor, por sua vez, temos inúmeras heurísticas que podem influenciar a maneira pela qual ele adquire e processa as informações. Aspectos emocionais, identitários, políticos, sociais ou psicológicos entram nesse processo, mas, para todos eles, o eleitor precisará de informação e processar a informação. É aqui que as heurísticas de Kahneman nos ajudam a ter uma visão mais ampla de como essas interações do eleitor com as informações que têm acesso produzirão percepções sobre os candidatos. Eis alguns exemplos:
Heurística de confirmação (mais conhecida como viés de confirmação): essa é uma das mais conhecidas. Tendemos a buscar informações/evidências que confirmem nossas hipóteses, ignorando todas as demais que poderiam nos colocar em dúvida. Essa heurística representa um grande desafio para os candidatos em tempos de comunicação digital, quando o direcionamento das informações exerce influência dos algoritmos das redes sociais. Os algoritmos “aprendem” com os usuários quais os conteúdos ou pessoas que eles mais se relacionam, e passam a direcionar seu feed para conteúdos semelhantes, limitando o seu acesso à diversidade de informações. Resultado, o eleitor se sente gratificado porque o mundo que ele percebe está alinhado com os conteúdos que chegam pelo seu celular, fechando o ciclo e limitando a mudança de posição. Essa pode ser uma boa notícia para candidatos já bem avaliados pelos eleitores, mas uma péssima notícia para aqueles que precisam romper a resistência dos eleitores, para também ser percebido e bem avaliado.
Heurística da disponibilidade: representa o processo de julgar/estimar a frequência com que um evento acontece segundo a facilidade com que essas ocorrências vêm à nossa mente. Em outras palavras, quanto mais fácil for a lembrança de um evento passado para o eleitor, maior a sua tendência de superestimar a repetição desse evento. Essa heurística também vale para o processo de identificação de causas de um evento. Portanto, eventos mais recentes tendem a influenciar mais consistentemente a avaliação que os eleitores farão dos candidatos, como, por exemplo, estimar qual é o mais competente para gerir uma cidade, ou mesmo, qual candidato representa um maior risco, caso seja eleito. O passado conta, por isso, muitas campanhas procuram focar nessa narrativa dos feitos e nos erros dos adversários.
Heurística da representatividade: as pessoas tendem a ordenar suas avaliações e julgamentos baseando-se em estereótipos, ou seja, naquilo que é mais representativo segundo suas percepções. A representatividade é uma heurística que influencia nossas escolhas porque ela ilustra os traços ou características mais comuns que definem, para nós, pessoas ou situações. Portanto, um eleitor que frequenta um bairro com pouco cuidado, com serviço ruim de limpeza, por exemplo, tenderá a inferir que a cidade está mal cuidada, sem prefeito atuante. Há dificuldades aqui, inclusive, de a propaganda eleitoral mudar a atitude desse eleitor, porque ele tem uma ideia de cidade representada na sua memória, e é por meio dela que ele organiza a sua compreensão.
Heurística da ancoragem: acontece quando as pessoas consideram um valor particular para uma quantidade desconhecida antes de estimar essa quantidade. Funciona mais ou menos assim. Se alguém te perguntar se Gandhi tinha mais de 114 anos quando morreu, você teria uma estimativa muito maior da idade da morte de Gandhi do que se a pergunta (ancora) se referisse à morte dele aos 35 anos. Em outras palavras, essa heurística influencia a maneira pela qual julgamos uma informação que traz um dado e que serve como gancho para nosso raciocínio. Pense, por exemplo, em um eleitor que considera que o prefeito fez pouco para a cidade, mas que assiste a um comercial eleitoral que procura enumerar os feitos do prefeito. Essa ancoragem pode auxiliar o eleitor a perceber o atual mandatário como alguém que fez muito mais do que ele (eleitor) estimava.