Em março de 2020, deparados com muitas informações desencontradas, munidos de muitas dúvidas e apenas com o medo de um vírus desconhecido e perigoso como certeza, o Brasil se juntou ao mundo com medidas de restrições para tentar se proteger da covid-19. Com todas suas especificidades sociais e econômicas, cada um fez e faz a quarentena como pode, e agora, depois de dez meses, assistimos e participamos de uma flexibilização, mais por cansaço e por necessidade do que por estratégia sanitária ou econômica.
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Informa, unidade de pesquisa de opinião pública do Bateiah.com, mais de 40% das populações de São Paulo e do Rio de Janeiro já flexibilizaram as rotinas adquiridas no começo da quarentena. Enquanto no estado fluminense 47,2% disseram que estão “um pouco mais flexível” se comparado ao momento mais crítico da pandemia e o atual, no caso de São Paulo, 40,8% afirmaram a mesma coisa. Além disso, 6,3% dos entrevistados no Rio disseram que estão totalmente flexíveis em relação à pandemia, em comparação com 3,6% que afirmaram o mesmo em São Paulo. O restante da amostra (46,5% no Rio e 51,1% em São Paulo) mantém o rigor com os cuidados para evitar a contaminação pelo coronavírus. A pesquisa realizada entre os dias 16 e 20 de dezembro de 2020 ouviu 562 pessoas que vivem no Rio de Janeiro e 519 pessoas do Estado de São Paulo. O erro esperado é de 4% para um nível de confiança de 95%.
Contexto surreal, impacto real
O visual das locações na Toscana do filme “A Vida é Bela”, indiretamente, inspirou a mudança de vida do empresário Ricardo Gaspar, 48, durante a pandemia. Mais do que isso, a tentativa do personagem Guido (Roberto Benigni) em tentar encontrar um caminho por meio da tormenta na película vencedora do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1997 também serviu de apoio para que a saúde mental de uma família paulistana confinada em um apartamento na zona sul da capital não ficasse tão abalada.
“O início de 2020 já estava duro para nós. Meu pai estava três meses internado e acabou partindo no dia 10 de fevereiro. Quando achávamos que a vida mudaria por esse fato, ela acabou tomando um outro rumo e para todos”, afirma Gaspar.
O começo da pandemia, segundo ele, foi confuso, porque até os especialistas estavam se contradizendo. A saída, então, foi buscar bom senso, ficar em casa, seguir os protocolos e aguardar. “Como no filme A Vida é Bela, comecei procurar dentro de uma situação caótica, algo que tornasse possível atravessar tudo com mais sanidade. Me agarrei ao humor, comprei um rolo de bike (rolo de treinamento, para adaptar a bicicleta e pedalar sem sair do lugar) e passei a aprender coisas novas, como cozinhar por exemplo. Nessas idas e vindas ao mercado para comprar produtos, acabei pegando a Covid e ficando 14 dias isolado. Não tive sintomas intensos, mas fiquei isolado e confinado num quarto”, diz Gaspar. Para não perder o bom humor, o empresário passou a fazer um diário da quarentena nas redes sociais, onde expunha situações engraçadas do dia a dia, como um bolo queimado que acabara de sair do forno, o que fez muito sucesso entre os amigos.
Em paralelo ao confinamento, a preocupação com o lado financeiro e de ter que lidar com os filhos adolescentes no auge da vida social se transformou em grandes desafios, que continuam na rotina da família até hoje. Por isso, segundo o empresário, novos rumos precisaram ser traçados.
Com o tempo mais duro de isolamento já ultrapassado, e pelo fato de ter tido covid, Gaspar disse ter se sentido mais protegido, mesmo sabendo que a doença causada pelo coronavírus não dá garantias de imunidade. Foi aí que ele começou a pedalar pelas ruas da cidade e a buscar regiões próximas da capital que permitissem passeios ao ar livre de bicicleta. O uso da bike já era uma realidade para ele antes da pandemia.
Assumindo riscos pela sobrevivência
Quase ninguém está confortável nem seguro com a situação, mas, mesmo com o medo da doença aumentando (65,3% dos fluminenses disseram isso em comparação com os 60,5% dos paulistas), a questão da sobrevivência financeira da família, como ocorreu com Ricardo Gaspar em São Paulo, ajudou bastante a empurrar as pessoas para fora de casa. Antes da “Era Corona” começar, o empresário já tinha a empresa
One Bike Hub – cicloturismo e protagonizava um evento de cicloturismo por mês por regiões próximas da capital paulista. Mas, nos últimos meses, mesmo com a pandemia em curso, ele resolveu retomar as atividades com todos os cuidados de segurança para os clientes.
Decisão que seria seguida por uma série de surpresas. “A ideia é sempre oferecer sanidade e equilíbrio para outras pessoas tendo como ferramenta a bicicleta. Quando retomamos, cada evento passou a ser uma agradável surpresa. Algumas pessoas estavam há meses sem ver o verde, sem ter contato com a terra ou ouvir os pássaros. Os passeios, então, passaram a ser um grande incentivo”.
Segundo Gaspar, a procura por atividades ao ar livre explodiu. Se antes ele fazia um evento por mês, agora são oito. “Toda semana levamos novos grupos para locais diferentes. Nunca havia feito tantos eventos seguidos e com pessoas agradecendo e se reconectando com a vida”, afirma o empresário, que pretende continuar firme com o negócio.
Apesar das quase 200 mil mortes no Brasil, o que mostra que políticas públicas de contenção da contaminação e de ajuda aos grupos menos favorecidos ainda são necessárias, as dúvidas entre a população ainda são muitas. Mas, segundo Gaspar, ele optou por assumir um certo risco de flexibilizar o isolamento para tentar formatar um novo modo de viver.
“Evitamos a todo custo qualquer evento grande, mas, de certa forma, a pandemia fez com tudo aquilo que acredito – uma vida mais leve, mais perto da natureza, com valores simples, com menos pressa –, aflorasse e fosse o único caminho possível. A forma que levamos a vida como ‘normal’, eu via como completamente insana”, diz Gaspar, representando um certo grupo de pessoas que também vem pensando da mesma forma e, na pandemia, está buscando novos caminhos. “Como tudo vai voltar após a vacina e como as pessoas irão reagir é uma incógnita, mas ninguém pode sair intacto dessa experiência”, diz o empresário paulistano.