Breves comentários acerca da população sem banheiro em casa no Brasil.
Bem-estar é um conceito relativo à percepção e situação de cada pessoa. Depende das dores, demandas, zonas de tolerâncias de cada um. Depende ainda de contextos vividos, como, por exemplo, os graus de dificuldade para alcançar condições de subsistência – famílias abaixo da linha da pobreza têm nesse aspecto a essência de seus objetivos. Por outro lado, aqueles que já venceram as condições necessárias para a subsistência têm outros objetivos, materiais ou imateriais. De outro modo, os que passam por dramas relacionados à saúde indicam o que mais esperam para alcançar o bem-estar pleno: a cura! Diante das inúmeras possibilidades de demandas e objetivos, trazemos nesses breves comentários uma das mais básicas condições para o bem-estar na cultura ocidental: a posse de banheiro em casa. Não estranhe a nossa proposição, caro leitor – ela nasce da constatação de que é relevante para muitos brasileiros.
Banheiros, como conhecemos hoje, têm antepassados. Sua gênese, conforme registrado na trilogia do historiador Fernand Braudel, Civilização Material, Economia e Capitalismo Séculos XV-XVIII, encontra-se na invenção do primeiro banheiro com descarga por Sir John Harington, cortesão da Rainha Isabel I, Londres de 1596. Duzentos anos após a invenção, o banheiro à inglesa ainda era um equipamento de luxo na França, em que o expediente de despejar dejetos pela janela nas madrugadas era comum. Esse hábito também foi registrado por historiadores entre os primeiros habitantes portugueses nas ruas do centro do Rio de Janeiro – tempos de capital do Império. Na Europa, a evolução foi o lançamento dos resíduos em riachos, que entrecortavam as pequenas cidades, denominados “merderel”. Com o tempo, os quartos de banho foram se tornando mais comuns nas casas mais abastadas, sem mais representar um símbolo de luxo. Depois, banheiros se tornaram mais frequentes nas casas urbanas e escassos nas rurais, até que se tornaram comuns. A ausência de banheiro no presente século é a expressão viva do subdesenvolvimento.
Dados do censo do IBGE-2022 expõem as condições dos domicílios brasileiros. Trazemos nesses breves comentários um recorte dessas informações: condições e características da destinação de esgoto e posse de banheiros nos domicílios. Os quadros a seguir trazem os dados nacionais do censo acerca desse tema.
Alguns números correm o risco de passarem desapercebidos. O percentual de 0,59 dos brasileiros, em uma primeira visada, se apresenta como fração ínfima. Mas isso não elimina a dramaticidade do número absoluto que o percentual representa: 1,18 milhão de habitantes sem banheiro em casa. Colocamos lupa em alguns dados liberados (ainda falta muito a ser apresentado) para estudar essa triste realidade de nossa população.
Os números trazem tanto indicativos de traços culturais quanto de necessidades não atendidas. A população indígena (0,6% dos brasileiros) é a que mais apresenta a ausência de banheiros nos locais de moradia: 14,5% – média bem acima da nacional (0,59). A população preta sem banheiro em casa tem peso de 0,6%, próximo da média nacional. Já a parda, 0,8% – um pouco acima da média nacional. Entre os brancos, apenas 0,2% não tem banheiro. Estamos lidando com dados gerais da base de dados, e não com microdados – uma análise mais detalhada pode indicar que outros fatores, sobretudo econômicos, explicam as diferenças observadas entre raças (ou cor da pele declarada). A tabela a seguir expõe os resultados do IBGE.
Diferenças regionais também são observadas, o que pode ser explicado tanto por questões econômicas quanto por concentrarem perfis culturais. A tabela abaixo mostra que as regiões Norte (forte incidência de população indígena) e Nordeste (menor renda média do país) apresentam percentual, bem acima da média nacional, de pessoas sem banheiro em casa.
Sul e Sudeste, com altas médias de renda domiciliar, apresentam percentuais bem abaixo da média nacional de domicílios sem banheiro. O caso do Centro-Oeste, que também apresenta a maior renda mensal média, tem percentual de sem banheiros maior que Sul e Sudeste.
Aplicando alguns testes estatísticos para trazer mais dados aos nossos breves comentários, ainda que com limitações acerca dos dados liberados pelo IBGE (dados gerais e não os microdados que serão apresentados em um futuro breve), encontramos algumas correlações importantes – embora pareçam bastante óbvias. A correlação estatística entre o índice de GINI (que retrata níveis de desigualdade de uma unidade geográfica) e o percentual de domicílios sem banheiro em cada região brasileira é alta: 0,469 (em uma escala entre 0,200 a 1).
O indicador que apresentou maior correlação com a ausência de banheiros foi o percentual de famílias que recebem bolsa família: 0,979. Ainda que as três variáveis sejam explicadas pela questão econômica (PIB, renda média etc.), a diferença de correlação entre percentual de domicílios sem banheiro em cada região e as variáveis “índice de GINI” e “percentual de domicílios com Bolsa Família” é significativa. A questão central é que GINI é um índice composto por outros fatores e o recebimento de Bolsa Família representa um fator direto, sem composição, embora dependente de outros elementos característicos da população beneficiária. Importante salientar que o “índice de GINI” e o “percentual de domicílios com Bolsa Família” apresentam correlação de 0,553 – os indicadores são dependentes da situação financeira das famílias.
Outra correlação testada foi entre o percentual de famílias com banheiros em cada região e o rendimento médio dos domicílios: -0,987. A correlação negativa fortíssima traduz em número o que cada um de nós imagina: quanto maior a renda do domicílio menor a chance de não ter banheiro em casa. O fato de ter banheiro em casa é um dos aspectos básicos da promoção de bem-estar. Em pesquisa nacional realizada pelo Instituto Informa em março/2024 ,o regionalismo e a renda familiar se mostraram explicadores da percepção de bem-estar. A tabela que segue expõe os percentuais de satisfação com o próprio bem-estar do respondente por região e por renda familiar (classe de consumo).
Pessoas com menor e maior renda foram entrevistadas em todas as regiões. Assim, com representantes de classes sociais distintas, as diferenças regionais são explicadas também por outros aspectos. Assim como podem indicar outras razões para as diferenças percentuais de posse de banheiro. Deixamos a provocação em forma de dúvidas para estimular outras investigações que possam revelar mais detalhes sobre a posse de banheiros em domicílios brasileiros. Em última instância, e o mais desejado, que a presente leitura do Censo, além de outras que podem surgir, estimule reflexões sobre soluções que possam nascer de governos ou iniciativas empresariais para essa cena dramática de nosso país.