Desde que se popularizou, no fim de 2022, a Inteligência Artificial Generativa, usada em diversas ferramentas para produzir conteúdos como texto, áudios e vídeos, tem chamado atenção sobre os possíveis impactos nos processos eleitorais. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se antecipou e aprovou, em fevereiro, uma resolução com regras sobre o uso dessa tecnologia. Entre os pontos abordados pelo TSE, podemos destacar, por exemplo, o veto à produção de deepfakes (conteúdo falso feito com IA), a obrigação das campanhas de informar qualquer uso de IA e a restrição ao uso de robôs para intermediar o contato com os eleitores.
De certa forma, o Brasil saiu na frente na busca de uma regulação mínima do uso da IA nas campanhas. Nos EUA, onde ainda falta uma regulação nacional clara, permanecem muitas dúvidas sobre riscos e oportunidades na aplicação de IA nas campanhas, especialmente este ano, quando ocorre a eleição presidencial. Para mapear os principais pontos, pesquisadores da Pesquisadores da Universidade do Texas, em Austin, acabam de publicar um relatório de pesquisa qualitativa com consultores, especialistas da comunicação digital e responsáveis por campanhas para entender as principais tendências e preocupações, como papel da IA na produção de desinformação, no hiper-direcionamento de mensagens ou deturpação da imagem de lideranças públicas por meio de deepfakes. Os dados coletados pela pesquisa são um ótimo ponto de discussão porque abordam também questões presentes nos debates entre especialistas e lideranças políticas no Brasil.
As entrevistas dos pesquisadores foram conduzidas entre janeiro e abril deste ano com três fornecedores de ferramentas de IA generativa política, um candidato, um especialista jurídico, um especialista em tecnologia, um especialista em estratégia de campanha, um coordenador de digital de um grupo de advocacy, um profissional de uma empresa de confiança e a segurança na internet, quatro consultores de campanha republicanos e oito consultores de campanha democratas. Este artigo traz um resumo das principais conclusões apresentadas no relatório.
Potencial maior nas campanhas nacionais
Segundo o relatório, o uso de tecnologias de Inteligência Artificial na política se concentra mais em campanhas locais do que em campanhas nacionais nos Estados Unidos. Nos estados como New Hampshire e Nova York, há indicações do uso de IA, especialmente em iniciativas eleitorais de menor escala. No entanto, os entrevistados destacam que campanhas locais enfrentam desafios significativos em termos de conformidade regulatória e capacidade técnica. Para que a IA tenha um impacto substancial na política, é necessário não apenas acesso a recursos financeiros, mas também conhecimento especializado para desenvolver modelos que ultrapassem as capacidades oferecidas gratuitamente.
Por outro lado, o relatório destaca que as campanhas apoiadas por Super Political Action Committees (Super PACs), que recebem bem mais recursos financeiros, estão mais inclinadas a adotar essas ferramentas avançadas. A disponibilidade de financiamento e infraestrutura robusta de organizações partidárias nacionais pode ampliar o uso de tecnologias de AI. Os entrevistados, contudo, relatam preocupações com a possível utilização negativa dessas tecnologias por agentes desconhecidos e menos escrupulosos, incluindo entidades estrangeiras e eleitores mais engajados ou marketeiros independentes.
Essas dinâmicas indicam uma tendência emergente onde a implementação da IA na política reflete tanto oportunidades quanto riscos significativos. Enquanto campanhas locais enfrentam barreiras de recursos e conformidade, entidades com maiores capacidades financeiras e organizacionais estão posicionadas para liderar a adoção dessas tecnologias. No entanto, o potencial para abusos e interferências não autorizadas destaca a necessidade urgente de regulamentação e vigilância para mitigar impactos negativos e garantir a integridade eleitoral.
Testes de eficácia da mensagem, arrecadação, hipersegmentação e indefinição entre ficção e realidade
Os avanços recentes no uso de AI na política estão revolucionando a forma como as campanhas são conduzidas, acelerando significativamente a análise e a geração de conteúdo, segundo o estudo da Universidade do Texas. Consultores políticos ouvidos pelos pesquisadores afirmam que agora podem realizar testes A/B em tempo real e ajustar suas estratégias com base nas respostas do público de maneira mais rápida e precisa. Enquanto alguns entrevistados expressaram preocupações sobre a potencial hipersegmentação que a AI facilita, outros veem um potencial promissor na capacidade de criar conteúdo altamente personalizado que pode influenciar decisões eleitorais de forma decisiva.
Pelo o estudo, os entrevistados consideram que a AI também pode gerar maior eficácia na arrecadação de fundos, uma área crucial em campanhas políticas. No entanto, as implicações éticas e legais relacionadas à transparência e à manipulação potencial do eleitorado são fontes de preocupação. Além disso, há debates sobre o impacto cultural e linguístico da IA, com alguns entrevistados especulando sobre futuras interações que poderiam influenciar profundamente a percepção pública sobre a veracidade das mensagens dos candidatos. Essas mudanças podem indicar um potencial transformador no cenário político, onde a linha entre a realidade e a representação artificial pode se tornar cada vez menos tênue.
Democratização das campanhas, riscos de desestímulo à participação com a desinformação e queda da confiança
De acordo com a pesquisa da Universidade do Texas, o crescente uso de IA na política desperta tanto entusiasmo quanto apreensão entre os entrevistados. Muitos veem potencial na democratização das campanhas, permitindo um maior alcance e engajamento dos eleitores menos interessados e os mais jovens, além de fortalecer campanhas locais e organizações sem fins lucrativos. Contudo, há preocupações significativas sobre como essa tecnologia está sendo utilizada para persuadir eleitores. Enquanto alguns observam benefícios na análise acelerada de dados e na arrecadação de fundos, outros alertam para o risco de a IA ser empregada para desestimular os eleitores, influenciando-os a não votar. Nos Estados Unidos, o voto não é obrigatório.
Além disso, segundo o estudo, existe uma preocupação mais ampla sobre o impacto cultural e cognitivo da IA na sociedade. O potencial de saturação do uso de IA em campanhas pode levar os eleitores a perceberem qualquer conteúdo gerado por IA como spam, diminuindo sua eficácia e a credibilidade do discurso político. Os entrevistados também expressaram preocupação de que a proliferação da IA torne menos clara a linha entre verdade e ficção, facilitando a disseminação de informações falsas e desafiando a capacidade do público de discernir entre eventos reais e simulados. Essas dinâmicas levantam questões críticas sobre ética, transparência e governança digital no uso da IA no cenário político contemporâneo.
Como o uso da IA tem sido regulamentada na política
Os entrevistados pela Universidade do Texas revelaram uma preocupação generalizada com a falta de regulamentação clara e uniforme para o uso da AI na política nos EUA, dependendo atualmente de normas não escritas e diretrizes éticas auto-impostas. Esta lacuna regulatória levanta questões significativas sobre a consistência e a responsabilidade dos fornecedores de tecnologia, com muitos expressando preocupações sobre a conformidade e a ética de outros participantes do setor.
Democratas e republicanos apresentaram perspectivas divergentes sobre o caminho regulatório ideal. Enquanto os democratas defendem uma regulamentação federal robusta com aplicabilidade prática, os republicanos preferem integrar o uso de AI nas regulamentações existentes da Federal Election Comission (FEC) e da American Association of Political Consultants (AAPC), questionando a autoridade dessas agências para regular efetivamente a IA na política. A discussão também envolveu a viabilidade de intervenções técnicas para monitorar e regular a IA, com ceticismo sobre a eficácia dessas medidas dado o avanço rápido dos modelos de IA.
Em termos de soluções propostas, os entrevistados concordaram amplamente sobre a necessidade urgente de divulgação e transparência no uso de IA na política. Esse consenso reflete uma preocupação com a integridade eleitoral e a confiança pública, destacando a importância de medidas claras e acessíveis para assegurar o uso ético e responsável da IA nas campanhas políticas.