A análise política apressada costuma direcionar muita energia para eventos episódicos, limitando o olhar para aspectos e características agregadas dos fenômenos políticos, sua engenharia e nuances. Muito provavelmente você soube nas últimas semanas por algum canal das “enormes” dificuldades do Governo Federal no Legislativo. Nesses relatos, sabemos que falta habilidade, força política e estratégia para fazer valer a agenda do Executivo. É possível identificar também uma descrição adicional de que o Legislativo é hoje mais adversarial, com baixos incentivos para a cooperação.
O resultado desses dois relatos predominantes aponta na compreensão geral do que convencionalmente classificamos como “crise política”, um sinônimo para paralisação e impasses. Essa percepção geral mostra, contudo, apenas parte do cenário. Neste artigo procuro mergulhar um pouco mais na relação Executivo-Legislativo para verificar se podemos afirmar com mais margem de certeza se estamos, de fato, diante de uma crise política (permanente). Para isso, escolhi examinar o Índice de Governismo produzido pelo Radar do Legislativo. Esse índice mede a proporção de deputados federais e senadores que votam segundo a orientação do Governo. Pelo índice, não importa se a matéria votada é uma proposição do Executivo, muito menos a direção do voto. Por exemplo, se a liderança do Governo indica voto “não” em uma determinada matéria, o índice mede quantos deputados votaram nessa direção. Isso também ocorre pela orientação “sim” das matérias votadas.
O que sugerem os dados no contexto da “crise política” permanente? Desde que assumiu o terceiro mandato, o presidente Lula tem mantido altos percentuais de governismo na Câmara e no Senado. Poderíamos falar de um governismo que sofreu algum abalo no Senado, entre janeiro e outubro de 2023, mas que se mantém, ainda assim, acima dos 70%, enquanto na Câmara identificamos maior estabilidade na casa dos 80%.
Para a produção do Índice de Governismo, foram consideradas 508 votações na Câmara e 59 no Senado. Quanto mais votações são utilizadas no cálculo, mais preciso é o índice. A queda inicial do índice em 2023 deve-se, provavelmente, ao total de votações. Quanto menor esse número, mais sensível (variação) são os percentuais ao comportamento dos parlamentares. À medida que o total de votações aumenta, a variabilidade tende a se estabilizar, quando é o caso de um maior alinhamento entre a orientação de voto e votação. Esses percentuais poderiam continuar variando fortemente, indicando baixa estabilidade, logo, pouco alinhamento entre orientação de voto e comportamento dos parlamentares. Mas não foi isso que aconteceu.
Na análise do índice na Câmara, podemos identificar cinco partidos que registram percentuais de governismo abaixo da média geral: PSDB, Cidadania, União Brasil, PL, Novo e deputados sem partido. Outros 14 ou estão na média ou muito acima da média. Para especificar ainda mais os dados, classificamos os partidos segundo “participação no Governo”, com a chefia de algum ministério, ou “não participação do Governo”. Nessa perspectiva, podemos dizer que na Câmara o Governo parece enfrentar alguma resistência entre partidos que fazem parte dos ministérios, é o caso do Republicanos, PP e União Brasil. Somadas, essas três legendas contam com 147 parlamentares, considerando a bancada que assumiu em 2023. Republicanos (81%) e PP (80%) registram índice de governismo dentro da média, enquanto União Brasil (75%) um pouco abaixo da média. Outros partidos que não fazem parte do ministério Lula apresentam, por sua vez, percentuais elevados de governismo, como é o caso do PV (98%), Avante (91%) e Solidariedade (88%).
No Senado, onde a situação é um pouco menos confortável para o Governo, sete partidos registram governismo abaixo da média 73%: União Brasil, PODE, PP, Novo, PSDB, PL e Republicanos. Outros cinco apresentam percentual acima da média, além dos senadores sem partido. Aqui temos também algumas características que merecem ser destacadas. União Brasil (71%), PP (54%) e Republicanos (53%), que participam do ministério Lula, registram índice de governismo abaixo da média, sugerindo uma maior resistência dessas legendas na orientação do voto a favor do Governo.
Embora o Governo de fato encontre resistências entre legendas que participam dos ministérios, os índices das duas casas demonstram que Lula III tem apresentado uma proporção relativamente alta de governismo. Cerca de 80% na Câmara e 73% no Senado.
De onde vem a percepção mais ou menos geral de que o Governo patina na sua coordenação no Legislativo?
Tenho duas hipóteses para tentar responder à pergunta sobre a chamada “crise permanente” como sinônimo de incapacidade geral do Executivo no Legislativo. A primeira hipótese é de natureza simbólica (muito importante em política) e outra de natureza política. Como sabemos, nenhum Governo espera vencer todas as medidas, nem que a sua orientação seja 100% aceita em todas as votações. É esperada alguma derrota ou divergência sobre como votar as matérias, mas, na média, todo Governo quer e deseja e trabalha estrategicamente para ter uma cooperação mínima do Legislativo.
Nessa perspectiva, a primeira hipótese de natureza simbólica defende que derrotas circunstâncias (esperadas) não têm valor igualmente circunstancial, como esperamos. Ou seja, como algo esperado e dentro da normalidade. “Como” ocorre a derrota e o “que é dito” sobre a derrota ajudam a construir uma “ideia de derrotado”.
O que antecede à derrota circunstancial também importa e muito. Exemplo: a devolução de uma MP feita pelo Legislativo, a derrubada de vetos do Presidente, a dificuldade de fazer tramitar uma proposta do Governo sinalizam uma interpretação de perda de capacidade do Executivo. Portanto, o contexto que antecede uma derrota circunstancial contribui para a interpretação dessa derrota, repito, circunstancial. É nesse sentido que uma derrota ainda que circunstancial ganha um sentido não-circunstancial. Em outras palavras, um sentido geral de “crise permanente” ou incapacidade.
É importante ressaltar que o Índice de Governabilidade enfrenta algumas dificuldades metodológicas. Por exemplo, o índice não diferencia a orientação de votos “sim” para uma proposta do tipo “Dia da Felicidade” e a votação de um tema “importante” na área econômica ou fiscal que tendem a ser muito mais faladas e debatidas na Opinião Pública, logo, com mais chances de estimular um sentido geral das capacidades de coordenação do Executivo. De todo modo, o índice de governismo é, por enquanto, o indicador que temos para analisar o discurso de baixa habilidade política do Governo no Legislativo.Feita essa ressalva, a segunda hipótese que propomos para compreender esse discurso predominante é de natureza política e está contida na primeira. Desde 2015, o Legislativo vem assumindo uma fatia maior do Orçamento, com a inclusão de emendas impositivas. O parlamentar tem hoje mais incentivos para seguir a sua própria orientação do que a orientação do Governo. Esse cenário alimenta ainda mais as interpretações de “derrotas” e “incapacidades” de coordenação do Executivo, dado que ele não “controla” mais as duas casas.
A questão que precisamos enfrentar é que as emendas impositivas não explicam por que o índice de governabilidade continua alto no Lula III. Uma explicação possível passa, justamente, pela capacidade política do Governo. Com votos do Legislativo (244 x 177), o Governo Lula III conseguiu manter o veto do presidente ao chamado calendário fixo de execução das emendas. Ou seja, embora o Governo seja obrigado a executar as emendas, ele ainda controla o calendário de execução das emendas e isso, muito provavelmente, ajuda a explicar também porque devemos ponderar o discurso de “derrota” ou “incapacidade” política do Governo nas suas relações com o Legislativo.