Diretora do Pacto Contra a Fome, Maria Siqueira fala sobre os avanços e desafios na luta contra a insegurança alimentar no Brasil

A atuação complementar e conjunta entre o poder público, o setor privado e a sociedade civil é a chave para o combate à desigualdade social, que promove a insegurança alimentar. Essa é a visão do Pacto Contra a Fome, plataforma que busca dar visibilidade às iniciativas de combate à fome e ao desperdício de alimentos no Brasil.

A coalizão traz dois grandes objetivos: a erradicação da fome até 2030 e a garantia da alimentação em qualidade e quantidade para todos os brasileiros até 2040. Ao Instituto Informa, a diretora do Pacto Contra a Fome, Maria Siqueira, traz um panorama sobre o cenário da insegurança alimentar no País e os caminhos para um futuro sustentável, com inclusão socioeconômica.

A ONU aponta uma redução expressiva no número de pessoas com insegurança alimentar severa no Brasil em 2023. O que levou a esse resultado? Há contribuição do setor privado, para além do poder público?

Dados das Nações Unidas e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram uma melhora de indicadores de fome, ainda com resistência dos níveis mais graves de insegurança alimentar, que avançaram pouco nos períodos analisados. Seguem mais afetadas as famílias chefiadas por mulheres, pessoas negras e indígenas, nas áreas rurais e nas regiões Norte e Nordeste.

Políticas públicas como o aumento do salário mínimo e a ampliação do Bolsa Família contribuíram fortemente para essa melhora, assim como a retomada da economia e a melhora dos indicadores de desemprego. Ao mesmo tempo, é preciso garantir maior abrangência, para que cheguem aos que hoje estão invisíveis, e sustentabilidade, conectando programas de transferência de renda às políticas públicas de inclusão produtiva e renda. 

Já na iniciativa privada, a agenda da alimentação e do combate à fome é de baixa prioridade. O último levantamento do BISC (Benchmarking do Investimento Social Corporativo) mostra que o setor repassou 51% menos recursos a organizações sem fins lucrativos em 2022 que em 2021, totalizando R$ 147,3 milhões. O valor é inferior ao patamar pré-pandemia, que chegou a R$ 476,9 milhões em 2018. O valor investido nessas temáticas é 10% do valor investido em educação e, quando se trata de agricultura, alimentação e nutrição, cai para apenas 4%. 

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A fome é puro resultado da desigualdade ou traz consigo um contexto mais complexo?

A fome é um problema de múltiplas raízes, como a desigualdade socioeconômica, a pobreza e o acesso ao alimento. É um ciclo que se retroalimenta, com perda de oportunidades de desenvolvimento humano e custos ocultos para o Estado. Quem passa fome ou está em insegurança alimentar, muitas vezes, não tem emprego fixo, não tem renda suficiente, não tem moradia adequada, tem menos ou nenhuma oportunidade de ascender e enfrenta preconceito e discriminação, o que amplia as desvantagens sociais e econômicas.

A desigualdade na distribuição de renda alimenta a pobreza, que é definida como a privação de recursos e oportunidades básicas que impedem as pessoas de viver uma vida digna e satisfatória, relacionando-se diretamente com a renda e as condições de vida que restringem o acesso regular e estável à alimentação.

No país que é um dos maiores produtores do mundo, garantir comida no prato diariamente ainda é um desafio para milhões de pessoas. E o desafio aumenta quando falamos de famílias chefiadas por mulheres negras, que vivem com crianças menores de 10 anos e no campo, onde se produz alimentos.

A alimentação é um direito social garantido pela Constituição, mas seu acesso universal em qualidade e quantidade é dificultado por diversas barreiras. Como o poder público deve atuar para garantir esse acesso de forma mais efetiva e permanente?

A fome impacta aspectos da vida humana e do sistema público, como o da saúde, no tratamento da desnutrição e das doenças crônicas associadas à má alimentação. Ou então da educação, prejudicando a aprendizagem e ampliando a evasão escolar.

É preciso uma abordagem multifacetada, multidisciplinar e intersetorial. As soluções endereçam diferentes causas e devem criar condições para que as pessoas deixem a condição de fome de forma permanente. Isso passa por políticas públicas de combate à pobreza, pela transferência de renda e inclusão produtiva, pela gestão de segurança alimentar nos municípios, por um programa nacional de redução de perdas e desperdício e por equipamentos como bancos de alimentos e restaurantes populares para garantir refeições saudáveis e gratuitas à população mais vulnerável.

Há espaço, nesse contexto, para parcerias público-privadas?

Acreditamos que o diálogo multissetorial é fundamental para a formulação e implementação de boas políticas públicas. Ainda assim, é preciso cuidar do que é competência e responsabilidade de cada parte para que os esforços não se sobreponham e respeitemos os limites de uma atuação colaborativa, considerando pontos como possíveis conflitos de interesse. 

Quais as diferenças entre soluções paliativas e eficazes propostas por empresas para contribuir com a erradicação da fome? Ou seja, como o setor privado pode contribuir efetivamente com essa bandeira?

As empresas têm se dedicado a criar soluções e ações conectadas à sua política de ESG, com programas que promovem a saúde e a segurança alimentar de seus funcionários – desde condições dignas de trabalho a espaços de alimentação saudável. Há também programas voltados à redução da insegurança alimentar, seja dos colaboradores, de seu entorno ou das próprias cidades, e parcerias com o terceiro setor, viabilizando a estratégia de superação da fome no País. Além disso, empresas detêm um grande poder de pressão sobre o setor público, atuando em favor de políticas públicas que enfrentem esses problemas.

O Brasil desperdiça alimentos em quantidade mais do que suficiente para resolver o problema da fome no País. O que impede a destinação correta dessa comida para quem precisa?

O Brasil produz 161 milhões de toneladas de alimentos anualmente, mas joga fora 55 milhões de toneladas ao ano nos processos de perda e desperdício do campo à mesa do consumidor. Somos um dos maiores produtores de alimentos do mundo, mas também um dos que mais desperdiçam. Uma contradição para um país com 64 milhões de cidadãos vivendo em insegurança alimentar. 

Combater o desperdício começa em casa, mas é especialmente responsabilidade dos setores que produzem e comercializam alimentos. Temos entraves como a falta de priorização política, um ambiente regulatório que não é favorável à doação e à redistribuição dos alimentos e, especialmente, a ausência de dados. A falta de um indicador que permita dimensionar o desperdício em cada etapa dificulta a elaboração de políticas públicas. É como voar sem um radar.

O desemprego contribui para a insegurança alimentar. De que forma governos, empresas e sociedade civil podem contribuir para essa questão?

O emprego está diretamente relacionado ao recuo da pobreza e à melhora no cenário da fome e da insegurança alimentar. Pessoas em situação de maior vulnerabilidade social são as que têm também menor escolaridade, o que dificulta o acesso ao emprego formal e, em especial, a trabalhos com melhor remuneração.

Deste ponto de vista, é possível atuar na macroeconomia, fazendo políticas econômicas que estimulem o desenvolvimento do País e incentivem investimentos e a geração de empregos pela iniciativa privada. Garantir que a população mais vulnerável se coloque no mercado de trabalho demanda atuação coletiva para alimentar as crianças, garantindo seu pleno desenvolvimento físico e cognitivo, além do investimento em educação, qualificação profissional, sistema sanitário e saúde. Sociedade civil, governos e iniciativa privada devem atuar de forma complementar e conjunta para garantir não só o acesso ao emprego, como a resolução da desigualdade social.

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