A chegada da chamada Inteligência Artificial generativa tem levado especialistas do mundo da tecnologia e do mercado de comunicação a discutirem uma iminente mudança de paradigma que já estaríamos vivenciando no campo das atividades criativas. Se confirmada, a transformação será significativa. Segundo o argumento, até o aparecimento da IA generativa, as atividades eram dominadas pelos “makers”, ou seja, aqueles que tinham habilidades técnicas e estavam no centro das atividades criativas. Programadores, designers, entre outros, por exemplo. Com a IA, os “makers” ganham porque podem melhorar suas atividades, mas o ponto central defendido nas rodas dos especialistas em tecnologia é que os “talkers”, ou seja, aqueles que fazem gestão de projetos e produtos terão ainda mais vantagem.
Em uma reportagem recente em O Globo, o jornalista Alexandre Freeland trouxe um testemunho interessante dessa discussão. Freeland participou do South by Southwest (SXSW), um dos maiores eventos sobre inovação, realizado em Austin, nos Estados Unidos, no mês passado. Na reportagem, o jornalista lembra uma fala de um dos maiores líderes no mercado de tecnologia, Jensen Huang, CEO da Nvidia. Embora não tenha ido ao SXSW, Huang já havia defendido o seguinte: “nos últimos 10 ou 15 anos, muitos disseram que aprender ciências da computação era vital. E a verdade é praticamente o oposto. É nosso trabalho cria tecnologias de computação para que ninguém precise programar. E que a linguagem de programação seja humana. Todas as pessoas no mundo são programadores, agora. Esse é o milagre da inteligência artificial”, defendeu o CEO.
O argumento segue uma linha que está se popularizando em alguns grupos, ou seja, se antes “saber fazer” dava uma grande vantagem competitiva para os “makers”, agora os “talkers” (falantes) terão grande oportunidade de protagonizar o mercado da criação. Basta pedir (falar) com a IA. Será?
Sem dúvida, a tecnologia da IA, no modelo chatbot, representa uma revolução significativa, porque amplia as possibilidades da atividade criativa, dando maior dinamismo e eficiência. Mas essa relação entre a passagem de um mundo dos “makers” para outro dos “talkers” tem mais nuances do que se pensa.
Imagine que você seja um programador que sabe escrever linhas de código em Python para analisar bases de dados eleitorais para um candidato que deseja compreender quais são as regiões em que ele vai bem, e aquelas em que ele vai mal. Se estiver trabalhando sozinho, esse programador precisará compreender o mínimo sobre distrito eleitoral, características de votos para cargos majoritários e proporcionais, e os fatores conjunturais, comportamento eleitoral, além de como as campanhas podem afetar os desempenhos dos competidores. Esse programador, portanto, precisará de uma formação mais multidisciplinar. Mas vamos supor que este não seja o caso. Bem, aí ele terá que trabalhar em parceria com um cientista político ou analista político que compreenda esses conceitos, suas nuances e o ajude a construir um código para extrair os dados e que possa produzir análises que de fato sejam úteis. Esse exemplo do profissional do tipo “maker” pode ser replicado para designers, jornalistas, fotógrafos, entre outros. Eles sabem fazer e como fazer, segundo os domínios de conhecimento de cada área.
Pule agora para o mundo dos “talkers”, que, segundo consta, terão agora uma grande vantagem, dadas as possibilidade de interagir com a máquina e produzir os conteúdos que deseja. Acredito que esse salto é um pouco apressado. Em uma requisição para uma IA não basta se comunicar para que a ferramenta entregue o que você deseja, e que essa entrega atenda corretamente o seu propósito. É preciso saber e compreender o que é a ferramenta, como ela trabalha e quais os seus limites e vantagens. Faça um exemplo. Peça a IA para construir um código em Python para analisar uma base de dados. Se você não conhece nada de programação, não terá condições de corrigir eventuais erros, nem de pensar em modelos mais eficientes. Talvez sequer consiga aplicar o código e saber compreender seus resultados.
Para acrescentar algo ao debate dos “makers aos talkers”, diria ainda que o mundo que se avizinha não é simplesmente dos “talkers”, mas dos “smart talkers”. Se a tecnologia nos dá alguma eficiência, como tudo indica que seja, ela também exige que saibamos construir as ordens para que essa eficiência aconteça.
Essa discussão pode parecer etérea, mas está mais presente em nossas vidas do que imaginamos. Por exemplo. Um IA do tipo chatbot não compreende semântica, nem sentidos de uma frase ou ordens que você apresenta para ela. O que acontece ali é o resultado de um processo probabilístico. O treinamento da IA produziu estatísticas que identificam a correlação entre os termos usados. Em linguagem técnica, cada frase que você escreve em um chatbot será quebrada em dezenas de tokens, ou seja, a maneira que os algoritmos transformam textos de humanos em dados quantificáveis. É daí que o modelo identifica padrões (de escrita), com a associação entre os tokens, e passa a prever quais os possíveis termos da resposta.
O que esse modelo indica é que não basta ser um “talkers” para brilhar no uso da ferramenta. É preciso ser um “talker” habilidoso, com vocabulário rico, diverso, e que compreenda os campos nos quais vai explorar o uso das ferramentas e, mais do que isso, que saiba que está diante de uma excelente máquina de calcular que pode te entregar melhores resultados, desde que você apresente as melhores requisições. O que a IA generativa está demonstrando, ou melhor, o que esses modelos que operam e estruturam essas ferramentas e seu modo de funcionamento indicam é que tenhamos usuários com habilidades comunicativas ainda mais ricas, com repertório que carregue nuances, contextos e entendimentos para que só a assim a chamada “inteligência” do lado de lá funcione.