Se há décadas a sociedade caminha rumo à digitalização de processos, no último ano o desenvolvimento tecnológico foi posto à prova. Indústria, comércio e serviços aceleraram adaptações para atender a públicos cada vez mais integrados às suas telas. Segundo o Instituto Informa, unidade de pesquisa da Bateiah Estratégia e Reputação, o consumo de comidas por delivery, por exemplo, seguiu igual ou aumentou em 2020 para 57,4% dos paulistas e 68% dos fluminenses. Já o tempo dedicado a assistir séries e filmes cresceu para quase 60% dos entrevistados dos dois estados.

E ninguém ficou acima do desafio, nem mesmo a atividade pública que no Brasil é tão associada a processos burocráticos e analógicos. Para o consultor Guto Ferreira, sócio da Solomon’s Brain e ex-presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), a crise sanitária serviu para expor ainda mais esse atraso, forçando mudanças que trazem benefícios tanto ao sistema quanto ao contribuinte. “A revolução digital permite ao poder público uma redução de custos e um aumento de produtividade. Existe uma lógica perversa de se ter um sistema inchado, com gabinetes cheios de assessores. A pandemia acabou desnudando que se pode trabalhar de casa e reduzir custos como ticket refeição, gasolina, além da economia do tempo, que é valiosa para a produtividade.”

 

 

Novas soluções para velhos problemas

Nas casas legislativas, o consultor aponta a importância das votações remotas, que dão maior agilidade à discussão e aprovação de matérias. Por outro lado, alerta para um possível movimento retrógrado das instituições. “A gente caminha para um embate que vai definir se esses conceitos permanecerão ou se vamos ter uma reação do sistema para retomar a um meio mais analógico, que é onde eles controlam. Quando tudo é mais digital, há um outro sistema que controla”, afirma Ferreira.

Ao cidadão, a necessidade de evitar aglomerações levou para a internet diversos serviços que antes eram somente presenciais – um exemplo é o Poupatempo, do governo paulista, com quatro a cada cinco atendimentos feitos de forma digital.

“A dificuldade é a mãe de todas as inovações”, diz o consultor. “O poder público vai ter que se acostumar com isso e algumas novas ferramentas vão surgir. Dentre elas, existe a possibilidade do blockchain, que é um sistema descentralizado de registros, atuar como forma de garantir a transparência dos processos. Os cartórios já estão fazendo isso, com uma parte de serviços digitalizada. E tem coisa mais tradicional que os cartórios, que existem desde o Império?”

Por mais transparência

O consultor Guto Ferreira acredita que há diversos fatores que pesam na digitalização dos processos na política. “A máquina é forçada. Se eu tenho a pressão do privado, da população utilizando e na vida pessoal do parlamentar também, porque ele é gente e é obrigado a usar também. Ele vai ser pressionado no poder público.”
Apesar da comunicação entre políticos e eleitores ter sido expandida e aproximada pelas telas, muitas pessoas não acompanham seus parlamentares na internet. Pesquisa do Instituto Informa aponta que, em maio deste ano, 86,5% dos paulistas e 87,6% dos fluminenses não seguiam nenhum deputado federal nas redes sociais. E, entre eles, apenas 8,3% de São Paulo e 7,9% do Rio de Janeiro se lembram em quem votaram para a Câmara dos Deputados nas eleições de 2018.

Menor custo, maior eficiência

E se é no voto que a participação política começa, Ferreira acredita que chegará o momento no qual a cidadania poderá ser exercida sem sair de casa. “Se você faz um Pix com reconhecimento facial ou por digital hoje, é absolutamente impensável que você não consiga votar da sua casa. Isso vai reduzir o custo de logística de mais de 500 mil urnas eletrônicas em todo o País e diminuir o papel que é jogado na frente dos colégios eleitorais, por exemplo. É um corte de gastos enorme do ponto de vista de eficiência pública.”
No ano passado, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) testou um modelo de voto pelo celular em três cidades – Curitiba (PR), São Paulo (SP) e Valparaíso (GO). Foi uma eleição simulada, com candidatos fictícios, em parceria com 26 instituições privadas. O projeto ainda não teve seus resultados compartilhados e, por enquanto, não há garantias nem prazo de implementação.

Em que pé estamos?

Quando se discute o acesso à digitalização no Brasil, Guto Ferreira afirma que ainda esbarramos em problemas estruturais. “Enquanto lá fora bombaram os mercados com self-checkout, que você não precisa ter contato, aqui isso ainda vai demorar por uma questão de desemprego que a gente não consegue resolver há décadas. Falta essa qualificação da população para que a gente possa dar um salto tecnológico.”
Para o consultor, são esses atrasos que colocam o País atrás de nações como Estados Unidos, Alemanha e Canadá. “O Brasil está bem atrás ainda porque não pegou o ‘boom’ desse desenvolvimento tecnológico antes da pandemia. E antes até se tinha dinheiro para fazer, mas as prioridades eram outras, se investia muito em pesquisa e não no desenvolvimento de tecnologia de fato. Eu diria que estamos de cinco a sete anos atrasados em relação às maiores potências do mundo.”
A solução, diz Ferreira, começa com uma liderança que entenda a importância da inovação. “Não adianta ter um ministro que entenda de tecnologia ou de novas economias. Isso tem que ser o presidente da República, seja ele quem for”, afirma o consultor, que foi demitido da ABDI em 2019, após denunciar “pedidos não republicanos” do governo federal. “Sem um presidente que não compreende a urgência da inovação como um dos pilares de desenvolvimento do País, não se terá um País tecnológico.”