Motivado pelos textos publicados na Ilustríssima (Folha de São Paulo) nos últimos domingos por Ronaldo Lemos (9/10) e Antônio Lavareda (16/10), aproveitando o argumento desse último acerca das 10 mil horas necessárias para que alguém seja experto em um tema, trago minha contribuição para o debate. Inicio minha posição a partir da concordância com Lavareda sobre os estudos e investigações no campo acadêmico que derivarão desse momento vivido pelos institutos de pesquisa. Tais reflexões recontarão, com mais serenidade, as questões que explicam ou que contradizem as críticas sobre os resultados de pesquisas eleitorais comparadas com as urnas.
Essa é uma tradição acadêmica trazida para o Brasil com forte contribuição do saudoso Marcus Figueiredo do Iuperj (atualmente Iesp), seja pelo início do grupo de estudos acadêmicos sobre eleições nos anos 1990 ou pelos notáveis trabalhos de registros eleitorais do Doxa – a partir dessas iniciativas, muitas outras surgiram, inclusive pelas mãos de quem bebeu na fonte original. Desse reconhecimento de Lavareda, sobre as contribuições futuras dos estudos científicos, pontuo a primeira questão crítica à sua defesa contundente acerca do que causou a polêmica das pesquisas. Nesse momento, em face da expectativa sobre os estudos futuros, deveríamos tratar nossas conclusões, ao contrário do que demonstra o texto do prestigiado e competente pesquisador Lavareda, como hipóteses e não, axiomas. Isso demonstra respeito pelos conteúdos que serão produzidos por zelosos pesquisadores acadêmicos.
Outras hipóteses surgiram entre destacados observadores e estudiosos de pesquisas eleitorais, muitos dos quais com mais de 10 mil horas de experimentação do tema. Outras, severas e imprecisas, são expostas em tela como índice de desconstrução dos métodos de sondagem tradicionais. A versão interpretativa de Ronaldo Lemos, por exemplo, nos parece bastante distorcida – mas, infelizmente, o “triplo carpado” do autor pode não ter encontrado a piscina cheia, mas densamente povoada por críticos que se movem mais pelos temas da moda do que por ampla experiência analítica. Ronaldo Lemos parece apresentar descuido e desprezo pelo prato que já nos serviu. A história de acertos das pesquisas eleitorais no Brasil é farta e as polêmicas sobre elas menores do que os seus bons frutos. No entanto, novos métodos e inovações são necessários diante de um cenário que se apresenta cada dia mais desafiador. Lembrando sempre que o mantenedor dos métodos de pesquisa de opinião é o campo das Ciências Sociais – que não autoriza aventuras preditivas.
Antes de voltar à hipótese de Lavareda, damos um passo atrás para abrir as portas do entendimento para o fenômeno. As abstenções, embora com alguma alta no primeiro turno dessa eleição, não foram argumentadas nos processos de pesquisa precisos que marcaram a nossa breve história de divulgação de estudos eleitorais – e a ausência dos eleitores também marcaram fortemente aquelas eleições. Que fenômeno é esse que se apresenta? Muitas outras hipóteses serão examinadas nos estudos futuros previstos por Lavareda. Não podemos descartar, dentre muitas outras, o possível fenômeno da relação de bolsonaristas com pesquisas eleitorais. Afinal, foram nas cercanias com maior expressão do voto em Bolsonaro que os resultados das pesquisas mais polemizaram. Mas não é tão simples explicar esse fenômeno na defesa das pesquisas. A ausência de respostas em pesquisas por bolsonaristas poderiam promover a superestimação do voto em Lula – o que não ocorreu. Ainda assim, essa hipótese deveria estar no radar das análises futuras.
Voltemos à hipótese de Lavareda. De uma forma geral, o experimentado pesquisador e Cientista Político centra seus argumentos nas abstenções – de fato, contingente expressivo do eleitorado. Lavareda argumenta corretamente, usando dados TSE, que o eleitor que mais se ausentou foi o com menor escolaridade – aspecto altamente correlacionado com a variável “renda familiar”. Seguindo o argumento, agora em posse de resultados de pesquisa, o autor indica a associação entre eleitores com baixa escolaridade e o voto em Lula. Dessa forma, Lavareda fecha seu argumento deduzindo que os ausentes seriam eleitores potenciais de Lula, ou pelo menos em sua maior proporção. Essa lógica apresentada por Lavareda parece-nos interessante e coerente. Mas a relação dessa lógica com a explicação sobre os resultados das pesquisas encontra pelo menos uma contradição. Esse dilema dos ausentes, que se apresenta como explicador da diferença das pesquisas, se estivesse plenamente correto causaria pelo menos dois efeitos na comparação urna-pesquisa: a) a ausência de eleitores potencialmente lulistas aumentaria o resultado eleitoral de Bolsonaro nas urnas – o que de fato aconteceu na comparação com as pesquisas; e, 2) essa ausência, diminuiria a performance de Lula na comparação com as pesquisas – o que não fora observado. Ora, podemos dizer que o primeiro efeito é sustentado pelo argumento de Lavareda. No entanto, o segundo efeito, não: os institutos indicaram de forma precisa o resultado de Lula – e de alguns candidatos associados a ele em locais que as pesquisas mais causaram polêmica.
Ainda que a proposição de Lavareda possa apresentar alguma contradição, não deve ser descartada nos estudos futuros – trata-se de uma boa hipótese que merece ser examinada. Em última instância, estamos diante de um novo fenômeno: a relação de respondentes com pesquisas eleitorais. O que até essa eleição foi tratado como insumo, a amostra enquanto representativa do universo pesquisado, terá que ser entendida como objeto de estudo pelos centros de pesquisa empresariais e acadêmicos. A solução certamente não é a demonização dos métodos clássicos – que têm trajetória e se mostram potentes nos estudos eleitorais. Ainda que mereçam ajustes, auxílio de censos atualizados, convergência com outros métodos de estudos comportamentais.
Fábio Gomes
Sociólogo – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF);
Mestre em Gestão – Fundação Getúlio Vargas (Ebape/RJ);
Especialista em Opinião Pública – IESP (ex-IUPERJ);
Especialista em Comunicação – ECA (USP);
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP;
Membro da ESOMAR – European Society for Opinion and Marketing Research.
Autor do livro: Comunicação dialógica e Reputação Eleitoral – O percurso gerativo do voto.